A COP15 (CBD) e rewilding: a renaturalização do Oeste dos EUA como modelo inspirador

Artigo assinado por

Para saber mais sobre o trabalho deste investigador clique aqui!

A segunda etapa da 15ª Conferência das Partes da Convenção para a Diversidade Biológica termina hoje, 19 de Dezembro, em Montreal. Entre outras medidas para a protecção da biodiversidade e ecossistemas, nela foram discutidas metas para o alargamento da abrangência e eficácia das áreas protegidas a diferentes escalas. A nível global, e à escala de cada região biogeográfica espera-se que em 2030, 30% da superfície terrestre e marinha esteja contida em áreas protegidas, das quais um terço deve ser consignado a uma protecção estrita da dos elementos ecológicos presentes. Duas estratégias antagónicas, mas igualmente legítimas, podem ser tidas em conta na definição de áreas a proteger: i) restauro de áreas degradas e sua posterior preservação, ou ii) exercer uma abordagem proactiva protegendo desde logo áreas com baixos índices de distúrbio antrópico. O alcance das metas dependerá de ambas as abordagens, mas importa desde já evidenciar onde se localizam as áreas com menores impactes humanos de forma a os evitar. O conceito de áreas selvagens (rewilding) vislumbra-se essencial a este respeito. Apesar de focado em áreas com um elevado nível de naturalidade, o rewilding interpela a uma gestão interventiva do território, em particular em áreas com deficits ecológicos cruciais (i.e. onde espécies-chave se extinguiram) e/ou em áreas pouco amplas onde processos estocásticos não são neutralizados por ecossistemas plenamente funcionais.

De seguida descrever-se-ão os quadros contextual e conceptual que visam apoiar uma iniciativa de renaturalização a grande escala, recentemente proposta pelo governo federal dos Estados Unidos da América (EUA), para a faixa ocidental do país.

Logo após a sua tomada de posse, em Janeiro de 2021, o Presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Joe Biden, assinou uma ordem executiva anunciando aos americanos o que viria a ser conhecido como o Plano para a Beleza (Beautiful Plan) com o objetivo de conservar em 30% os solos e mares dos EUA até 2030. Biden desafiou os americanos para colaborarem ativamente num esforço partilhado para a “conservação, restauro e promoção de conectividade do território natural e da vida selvagem dos quais todos dependem“. Esta foi uma iniciativa ousada e bastante vinculativa do presidente dos EUA para introduzir um modelo de base científica para a recuperação e revalorização das terras públicas (federais) no Oeste dos EUA. As motivações por detrás do plano deverão ir além das legítimas preocupações da sobrevivência humana e seu desenvolvimento económico. Deve antes de tudo, ter como base um compromisso de princípios para com o mundo natural numa base moral e filosófica profundas. Os princípios de acção promovidos por Aldo Leopold no inicio do século XX.

Em geral, o rewilding visa o restabelecimento de processos ecológicos vitais em espaços amplos. Pode envolver a remoção de espécies não nativas, procedimento chave para o restauro de espécies nativas. O apelo ao rewilding é fundamentado nos mais basilares conceitos ecológicos e dinâmica de sistemas. Aproveitando o apelo do Presidente Biden, cientistas locais tentam encontrar processos inteligentes e robustos para a identificação, conservação, ligação e restauro de uma grande rede de áreas para rewilding no Oeste americano, tendo como modelo de base o valor ecológico de populações ecologicamente funcionais de duas espécies-chave na região, o lobo-cinzento (Canis lupus) (Figura 1) e o castor norte-americano (Castor canadensis) (Figura 2).

Outrora, antes da colonização da América do Norte pelos Ingleses, os lobos cinzentos tinham uma distribuição ampla, estendendo-se por todo o Oeste dos EUA. Através de medidas legislativas para protecção de espécies ameaçadas de extinção, em meados dos anos 90, os lobos-cinzentos foram reintroduzidos em partes das Montanhas Rochosas no Norte e os lobos cinzentos mexicanos (Canis lupus baileyi) foram reintroduzidos em partes do Novo México e Arizona. Atualmente, a distribuição do lobo cinzento nos onze estados ocidentais é aproximadamente 14% da sua área histórica pre-colonização. Anteriormente na ordem das dezenas de milhares de indivíduos, estima-se que existam hoje 3500 lobos. Como predador de topo, os lobos são elementos chave nos ecossistemas dado que o seu impacte tende a desencadear efeitos ecológicos múltiplos em cascata, sob as presas e habitats, numa variedade de paisagens de oeste americano.

Fig. 1 – Lobo-cinzento fotografado durante o Inverno, em Montreal (Canadá). Fotografia: Milo Weiler | fonte: Unsplash.

Tal como os lobos, as populações de castores no passado distribuíam-se por todo o oeste americano, mas decorrente dos processos coloniais, foram dizimadas em cerca de 90% a 98%, estando agora localmente extintos em muitas áreas. Ao promoverem o desbaste de vegetação arbustiva e arbórea e a construção de diques, os castores enriquecem o habitat ripícola, aumentando a riqueza de peixes, a retenção de água e sedimentos, mantêm fluxos de água durante as estações secas, estabilizam zonas húmidas – essenciais como quebra-fogos , melhoram a qualidade da água, potenciam o sequestro de carbono, entre outros efeitos. Desta forma, o restauro de populações de castores é um meio económico para recuperação de zonas ribeirinhas degradadas. Embora ocupem menos mais de 2% da paisagem estas zonas são áreas-chave para 70 % da fauna selvagem.

Fig. 2 –Castor norte-americano fotografado no Ontário, Canadá. Fotografia: Ryan Hodnett (licença CC BY-SA 4.0) | fonte: Wikimedia Commons.

Na identificação dos habitats potenciais habitats para rewilding, os cientistas começaram por considerar a área total de distribuição potencial do lobo cinzento nas terras federais dos 11 Estados ocidentais. O processo inicia-se com o lobo porque é uma espécie cuja recuperação e persistência exigem grandes extensões de habitat de qualidade. Uma vez identificadas estas áreas, o plano propõe assegurar uma faixa de áreas contíguas de gestão federal com pelo menos 5000 km2 de extensão. Esta análise preliminar permitiu revelar uma rede potencial de onze grandes áreas para rewilding denominada por Rede Ocidental de Renaturalização (Western Rewilding Network) (Figura 3). Complementarmente foram identificadas áreas que permitem conectar estas onze áreas protegidas emulando um modelo de conectividade eléctrica.

Fig. 3 – Áreas de intervenção da Rede Ocidental de Renaturalização. Na imagem da esquerda as diferentes cores definem os 11 núcleos de rewilding isolados. Na imagem da direita são ilustradas (a verde) zonas de conectividade com base nos requisitos de habitat do lobo-cinzento (adaptado de Ripple et al., 2022. Rewilding the American West, Bioscience).

Seguiu-se a catalogação das espécies animais ameaçadas, incluindo subespécies e unidades populacionais, que tenham pelo menos 10% das suas áreas de distribuição na Rede de Renaturalização. Para cada uma destas espécies, foram determinadas as principais ameaças locais, nomeadamente as associadas à produção de gado (pastagens), exploração madeireira, extração mineira de petróleo e gás. A Rede de Renaturalização alberga atualmente 92 espécies ameaçadas distribuídas por nove grupos taxonómicos: cinco anfíbios, cinco aves, dois crustáceos, 22 peixes, 39 plantas (angiospérmicas), cinco insetos, 11 mamíferos, um réptil e dois gastrópodes dulçaquícolas. A produção de gado (pastagens) é de longe a ameaça mais comum (48% das espécies; n = 44), seguida de extracção mineira (22%; n = 20), extracção de madeira (18%, n = 17) e exploração de petróleo e gás (12%; n = 11). Em sete das 11 áreas potenciais para rewilding, mais de metade das espécies listadas estão maioritariamente ameaçadas por pastagens intensivas. Em todos as 11 áreas focais a densidade média de linhas de água excede os 50 metros por km2, o que sugerindo a existência de oportunidades para a recuperação do castor.

As pastagens são prevalentes nas terras federais do Oeste americano. Ocorrem mesmo dentro de algumas áreas protegidas, em áreas identificadas como hotspots para renaturalização e em refúgios de vida selvagem. Os efeitos da herbivoria intensiva de grande escala acarretam importantes impactes, provocando, por exemplo, perturbações no fluxo hídrico, degradação de zonas húmidas, alteração de regimes de incêndios e impede a regeneração de espécies lenhosas. Há ainda os efeitos multitróficos do pastoreio intensivo sobre herbívoros e predadores e as emissões a larga escala de metano, que podem levar a que ecossistemas naturalmente sequestradores potenciais de carbono se tornem áreas emissoras de carbono, em condições climáticas desfavoráveis. Propostas no sentido de minimizar o efeito do pastoreio sobre os ecossistemas nas áreas federais estratégicas da Rede de Renaturalização pode desempenhar um papel importante papel na mitigação das alterações climáticas a breve prazo. Além disso os proponentes realçam ainda que a carne produzida na área abrangida pela rede proposta representam apenas cerca de 2% da produção nacional de carne.

Os planos estratégicos a serem desenhados por cientistas locais enfatizam a necessidade de: i) reversão de pastos a terras naturalizadas nas áreas identificadas; ii) promoção da recolonização e a proteção das populações de lobo-cinzento no interior da Rede; iii) reintrodução do castor-norte-americano. Estas três intervenções podem melhorar em muito a estrutura e funcionamento dos ecossistemas, com particular realce para os ribeirinhos (Figura 4). É importante considerar a ordem das etapas de intervenção já que, por exemplo, só faz sentido reintroduzir o castor depois de controladas as actividades de pastoreio intensivo nas terras federais, de forma a se facilitar o restabelecimento da vegetação ripícola lenhosa de que o castor depende.

Fig. 4 – Efeito sobre os habitats da reintrodução do lobo cinzento (em cima) e do castor norte-americano (em baixo) (adaptado de Ripple et al., 2022. Rewilding the American West, Bioscience).

Os benefícios ecológicos induzidos pelo plano de restabelecimento de uma Rede Ocidental de Renaturalização tendem a aumentar com o tempo, alcançando os maiores níveis de funcionalidade quando as populações de lobos e castores atingirem densidades ecologicamente efectivas. Dado que o plano proposto tem como aspeto chave a protecção das áreas federais fulcrais à conservação do lobo-cinzento, as quais ocorrem maioritariamente em áreas florestadas, ele complementa uma rede já existente de protecção de áreas estepárias, focadas na preservação do habitat de uma espécie-icónica local: o tetraz-grande (Centrocercus urophasianus) e um conjunto de outras espécies estepárias.

O plano de renaturalização proposto sugere a redução das pastagens nas terras federais em 29% (285000 km2) nos 11 estados ocidentais e um programa económico e social de apoio e incentivo aos produtores que aceitem renunciar às suas licenças de pastoreio em terras federais. Ainda assim prevê-se que se gerariam mais valias económicas líquidas dado o custo social associado ao carbono originado pelo gado pastoreado em terras federais. Será igualmente necessário um plano de ação plano para a gestão de potenciais conflitos decorrentes do impacte de lobos e castores fora das fronteiras definidas para a Rede de Renaturalização.

Pretende-se que a Rede ofereça oportunidades de conectividade funcional entre as áreas identificadas para rewilding, facilite o fluxo genético entre populações espacialmente segregadas, permita os reajustes adaptativos de distribuição das espécies associados aos efeitos das alterações climáticas e favoreça os movimentos naturais de espécies com elevada necessidade de espaço vital. A Rede de Renaturalização propõe-se proteger e/ou recuperar 44 espécies ameaçadas pelas actividades extrativas locais, em particular o pastoreio e, com o tempo, espera-se que os sistemas ribeirinhos se auto-regenerem, que as linhas de água se tornem biodiversas que se reequilibrem os ciclos naturais de incêndios, que se atenue a taxa de mudança climática com a promoção do sequestro de carbono. A diminuição de licenças de pastoreio dentro das áreas federais focais diminuirá o nível de conflito entre as actividades económicas e os grandes predadores. Além disso, a regeneração do lobo-cinzento contribuirá para o controlo natural das populações super-abundantes de ungulados nativos, potenciando o crescimento de vegetação nativa, como álamos (Populus tremuloides), que suportam elevados níveis de diversidade e se encontram em regionalmente declínio por via do efeito excessivo do pisoteio e degradação vegetativa por parte de ungulados selvagens na ausência de lobos. O restauro do castor é também fundamental para reforço dos benefícios ecológicos associados a zonas ribeirinhas funcionais e biodiversas.

Os próprios proponentes do plano reconhecem a controvérsia e o aparente quixotismo associado à Rede de Renaturalização a conceber, mas sustentam-se no pragmatismo necessário para reverter um conjunto de crises ambientais que caracteriza os estados ocidentais dos EUA, onde se realça a crescente seca e escassez de água, o aumento da frequência de ondas de calor, incêndios florestais de larga escala e a perda de biodiversidade e dos serviços de ecossistemas a ela associados.

A meio do seu mandato o Presidente Biden pondera uma política ambiental ousada, fundamentada na melhor ciência ecológica existente e de largo alcance no que toca aos sistemas ecológico e climático globais. O “Plano para a Beleza” favorece assim uma rede organizada de áreas de rewilding em terras federais. Se implementado em conjunto com ações mais localizadas e precisas (face aos diferentes contextos locais) o plano permitirá assegurar metas ambientais criticas com o menor impacte socio-económico, proteger inúmeras espécies em risco de extinção, aumentar a resiliência às alterações climáticas e sustentar um conjunto de processos ecológicos conducentes ao bem-estar humano. Esta é assim uma oportunidade histórica para o restabelecimento de partes significativas do Oeste americano (largamente degradado) que poderá servir como um modelo inspirador a implementar em outras regiões.

Em Portugal, onde a maioria das terras são propriedade privada, abordagens consubstanciadas em instrumentos públicos de gestão e ordenamento territorial não se revelam prováveis. Por forma a que o país atinja o seu compromisso de alocar 30% da área à protecção da biodiversidade (provavelmente 50% em 2050) será necessário vitalizar políticas de incentivo à conservação da biodiversidade e promoção de serviços ecossistémicos. Abordagens de mercado, em que quem degrada paga, quem degrada compensa de forma ecologicamente eficaz e quem protege lucra são etapas-chave no emergir de um mercado regulado para a protecção de um bem publico multi-geracional que é a biodiversidade. Portugal está na vanguarda destas discussões e elas próprias inspiraram a recentemente lançada “Biodiversidade 2030: Nova Agenda para a Conservação em contexto de alterações climáticas”.

1 thoughts on “A COP15 (CBD) e rewilding: a renaturalização do Oeste dos EUA como modelo inspirador

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.