A que aspiramos? A nostalgia e a intervenção no domínio de estados ecológicos

Artigo assinado por

Para saber mais sobre o trabalho deste investigador clique aqui!

O crescente abandono de terras agrícolas gera oportunidades para o ressurgimento da Natureza quer por via do restauro ecológico, reintrodução de espécies ou renaturalização (rewilding). Mas quer os quadros de referência quer os níveis de intervenção na criação de ecossistemas a partir de áreas degradadas não é consensual. Que desafios enfrentam os conservacionistas nas suas acções de restauro, reintrodução e renaturalização num mundo em mudança?

A ideia de que o ambiente muda unidirecionalmente, rapidamente e irreversivelmente não é nova, mas foi apenas na década passada que se tornou amplamente aceite, e suas consequências amplamente compreendidas. Em termos estatísticos, a maioria dos parâmetros ambientais relevantes para a distribuição e abundância de organismos são agora claramente não estacionários. Os sistemas naturais apresentam propriedades próprias de resiliência, mas existem limiares de dinâmica ambiental – geralmente desconhecidos de antemão – para além dos quais as alterações do sistema podem tornar-se irreversíveis. Os impactes das alterações climáticas antropogénicas são em grande parte responsáveis por esta mudança de perspectiva, mas as alterações ambientais irreversíveis também decorrem de outros impactes humanos, incluindo as dinâmicas passadas e presentes de uso do solo, a poluição e enriquecimento em nutrientes, o estabelecimento de espécies exóticas invasoras e a extinção de espécies – todos marcadores de uma nova época geológica – o Antropoceno. Se não pudermos voltar atrás, a utilização tradicional dos ecossistemas actuais e passados como metas e critérios para o sucesso em intervenções ecológicas tem de ser substituída por uma orientação não apenas para o futuro, mas para um futuro incerto. A nostalgia já não é uma opção, mas o que deve substituí-la?

UMA TAXONOMIA DE TERMOS

A Biologia de Conservação navega maioritariamente por três tipologias gerais de acção. No quadro do restauro ecológico, promove-se o suporte e recuperação de ecossistemas que tenham sido degradados, danificados ou destruídos; o restabelecimento da composição, estrutura e função das espécies a uma condição histórica de referência; integrando ainda os objectivos menos ambiciosos de reflorestação, reabilitação, recuperação e abordagens mais antropocêntricas no campo da engenharia ecológica. Uma segunda tipologia de acções conservacionistas refere-se a processos de translocação a que corresponde o movimento e a libertação de organismos com objectivos de conservação, incluindo reintrodução e reforço populacionais – onde os organismos são libertados dentro de sua área de distribuição nativa – bem como introduções fora dessa área, para evitar a extinção (colonização assistida) ou para reposição da função ecológica (substituição ecológica ou taxonómica). A migração assistida, o termo mais utilizado para superar as limitações de dispersão em espécies que serão afectadas pelas alterações climáticas, é melhor entendida como uma subcategoria de colonização assistida. Existem ainda dois processos que não estão contemplados presentemente nas directrizes da União Internacional para Conservação da Natureza: o fluxo genético assistido, que envolve o reforço com conspecíficos portadores de genes que podem facilitar a adaptação ambiental; e o repovoamento, usado principalmente para aumentar os efectivos populacionais de espécies-alvo.

Por norma, o restauro ecológico tem-se centrado tradicionalmente na vegetação, ao passo que a reintrodução e as acções conexas são desenhadas ao apoio de espécies animais, em especial de vertebrados.

A terceira tipologia de intervenção em conservação foca-se na renaturalização (rewilding) que ainda não atingiu a maturidade e respeitabilidade do restauro e reintrodução (tema já aqui abordado). É útil a distinção entre duas abordagens de renaturalização extremas: a renaturalização trófica, em que o objectivo é restaurar as funções dos ecossistemas através da reposição de relações tróficas funcionais descendentes (top-down) e a renaturalização passiva, em que a interferência humana é minimizada desde o início. Mais recentemente foi aplicado um termo adicional, “recuperação ecológica”, a uma abordagem intermédia que poderia ser mais adequada em paisagens altamente modificadas, como a que caracteriza a maior parte da Europa. Movidas maioritariamente por acções intervindo espécies animais, tanto a renaturalização como as reintroduções têm frequentemente como quadro de referência ecossistémica original o Pleistoceno – o período que antecedeu as grandes extinções generalizadas da megafauna terrestre.

A conservação da natureza faz assim uso de um conjunto de palavras de uso comum com prefixo “re”, como reconectar, recuperar, recriar, reflorestar, reabilitar, reforçar, reintroduzir, remediar, reparar, reabastecer, restaurar e revegetar que reforçam a impressão de que a conservação é fundamentalmente movida pela nostalgia: um desejo de regresso a condições passadas. A reconciliação (em inglês: bring back together) tem um significado específico na ecologia e tem como meta maior o incentivo à funcionalidade ecológica em paisagens dominadas pelo Homem – em muitos aspectos, o oposto do restauro ecológico e recuperação de ecossistemas.

Diferentes visões de rewilding

As primeiras iniciativas de renaturalização (rewilding em inglês) datam de há 25 anos na América do Norte. Originalmente o intuito dessas acções passaram pela recuperação de grandes áreas selvagens com elevados níveis de conexidade e capazes de sustentar animais de grande porte, em particular carnívoros (como lobo, o lince, a puma, o glutão, ursos entre outros). No entanto, na sua versão europeia, a revitalização por grandes carnívoros foi substituída por uma tónica em outros grandes animais, em particular os herbívoros (como o búfalo, os veados, os cavalos selvagens, bovídeos entre outros). Outra diferença substancial na adopção de práticas de renaturalização na América do Norte e Europa é que níveis mínimos de intervenção humana são fundamentais para a recuperação ecológica na Europa, sendo que muitos projectos têm uma abordagem inteiramente passiva. Abordagens passivas em conservação são menos enfatizadas na América do Norte, embora, paradoxalmente uma das principais justificações para a renaturalização passa por gerar ecossistemas autoregulados. Estas diferenças nos níveis de intervenção resultam em grande parte da inexistência de áreas selvagens na Europa (uma meta inspiradora a atingir com a renaturalização), enquanto que a sua existência na América do Norte é ainda assim coincidente com lacunas funcionais decorrentes de distúrbios que ocorrem em zonas vizinhas. Estas diferenças reflectem igualmente a maior densidade populacional humana na Europa e a história mais longa da utilização intensiva do solo. A recuperação de diferentes habitats antropogénicos disponíveis após o abandono das práticas agrícolas tem servido de estímulo à conservação na Europa. Estas diferenças práticas decorrem igualmente das diferenças filosóficas significativas ocorrentes de ambos os lados do Atlântico. Embora o objectivo inicial na América do Norte consistisse em restaurar a natureza selvagem pré-colombiana, com todos os seus grandes vertebrados, o principal objectivo na Europa tem sido a criação de “natureza selvagem” (caracterizada pela autonomia funcional, espontaneidade, auto-organização e ausência de controlo humano) em zonas que têm sido geridas pelo Homem há milénios. A Europa pré-neolítica é frequentemente citada como exemplo de como deveria ser esta natureza selvagem, se bem que seja tida mais como inspiração do que como objectivo prático. Grande número dos projectos europeus está explicitamente orientada para um futuro modificado. É claro que a América do Norte pré colombiana também era habitada por povos indígenas, facto que levou à sugestão de um estado de referência histórico anterior, balizado por fases precedentes às grandes extinções da megafauna do Pleistoceno Superior, a ser alcançado pela introdução de espécies conspecíficas às extintas. Uma consequência destas diferenças é que as grandes críticas à recuperação levada a cabo nos ecossistemas da América do Norte são frequentemente centradas nos riscos percepcionados que os grandes carnívoros representam para as pessoas e para o gado, enquanto na Europa as críticas focam maioritariamente a perda de paisagens bioculturais tradicionais. Na Europa, tem-se observado recentemente recuperações importantes de populações de meso carnívoros, mesmo sem um apoio activo deliberado de recuperação, que se constituem como ameaça potencial para o paradigma europeu da renaturalização sem suporte activo de intervenção.

A QUE ASPIRAR

A definição de estados históricos de referência sempre foi controversa, dado o receio de se focarem as acções a estados de referência que por si só já seriam alterados e afastados de quadros de referência originais. Na América do Norte, o retorno ao Pleistoceno foi uma tentativa de ultrapassar este problema, escolhendo-se uma base de referência anterior à chegada humana. Argumentos semelhantes emergiram quer na Austrália quer na Europa, onde os humanos modernos chegaram há ainda mais tempo. O que mudou na última década tem sido um reconhecimento crescente de que a mudança ambiental acelerada mostra se efectivamente irreversível colocando qualquer linha de referência histórica inatingível. As mudanças climáticas foram objecto de maior atenção, em parte porque são mais facilmente modeladas, mas outras alterações ambientais de larga escala tornam as trajectórias de distúrbio ecológico largamente irreversíveis. O desvio a estados de referência históricos tem sido mais fácil de aceitar em ilhas e em particular na Austrália, onde as extinções e invasões têm tido uma influência dominante nos ecossistemas presentes. Por exemplo, algumas espécies de tartarugas não autóctones foram introduzidas para controlar plantas invasoras nas ilhas Maurícias, enquanto que na Austrália a introdução dos dingos tem sido vista de forma favorável pelo seu impacte sobre gatos e raposas invasoras. É hoje tema de debate a possível introdução de elefantes para controlo de gramíneas invasoras. Se o restauro ecológico for libertado de suas restrições tradicionais, a diferença para a renaturalização centrar-se-á apenas nos níveis admitidos de intervenção, variando esta entre níveis elevados necessários para manter um estado desejado através de introduções iniciais de espécies para conduzir um ecossistema numa direcção desejada até se alcançar as vantagens ecológicas da não-intervenção traz. Em vez de se avaliar o êxito das acções em relação a uma base fixa, os resultados das intervenções de conservação devem antes ser comparados com cenário contrafactuais, ou seja, o que teria ocorrido sem as intervenções.

INTERVIR OU NÃO INTERVIR

De igual forma, existe actualmente um amplo debate sobre a admissibilidade de diferentes níveis de intervenção mesmo quando estes se propõem reconduzir os ecossistemas a determinados níveis de equilíbrio. O restauro ecológico era tradicionalmente tido como o lado activo da conservação, mas a conservação como um todo está a ser conduzida por perspectivas cada vez mais intervencionistas. A futura gestão da Natureza será antes de mais antecipativa, com acções destinadas a definir a forma como se espera que um sistema venha a ser no futuro. A necessidade de intervenções para manter a biodiversidade e as funções dos ecossistemas, e a magnitude dessas intervenções, será maior quanto mais rápido for o ritmo das mudanças ambientais (Figura 1). É provável que a necessidade seja também muito maior em zonas mais pequenas e mais isoladas do que nos ecossistemas muito grandes e interligados como os que são foco de acções de renaturalização. Mas as elevadas taxas de alterações ambientais podem sobrecarregar a capacidade de adaptação até dos ecossistemas mais bem interligados.

Fig. 1 – Velocidade de mudança ambiental.

A dicotomia aprofundada entre a Natureza e o Homem, que decorre de acções de renaturalização na sua componente mais tradicional nem sempre foi bem acolhida na Europa, onde a natureza e a cultura interagem há milénios. No extremo oposto do espectro de intervenção decorrente do restauro ecológico em larga escala estão as tentativas de maximizar a biodiversidade em paisagens multifuncionais. O sucesso da reconciliação entre pessoas e Natureza dependerá tanto da existência de paisagens segregadas entre o desenvolvimento agrícola e humano e o funcionamento natural, como da partilha de terras, onde espécies selvagens ocorrem nas matrizes urbana e agrícola. Muitas espécies selvagens sensíveis não terão capacidade de subsistir em tais paisagens, mas as que prosperam contribuirão mais para fomentar experiências humanas da Natureza do que as que vivem em áreas selvagens mais remotas e extensas. Embora as filosofias da renaturalização e da reconciliação sejam opostas, não há nenhuma razão ecológica para que grandes áreas de baixa intervenção e paisagens multifuncionais ricas em biodiversidade não possam coexistir e interactuar a escalas regionais e continentais.

O CAMINHO A SEGUIR

Muitas das questões suscitadas pelas rápidas alterações ambientais não têm respostas puramente científicas. Em especial, o afastamento dos sistemas de referência históricos, a recuperação de paisagens culturais antigas, a utilização de substituição taxonómica e a potencial utilização de modificações genéticas suscitam questões éticas importantes que não podem ser ignoradas. A conservação moderna sempre teve uma base ética mas, no Antropoceno, à medida que emergem novas questões que se revelam mais complexas, o imperativo subjacente de preservar e proteger a natureza nem sempre levará a uma solução única, simples e óptima. Olhar para o futuro é necessariamente mais difícil do que olhar para trás. Se a continuidade histórica for completamente abandonada como objectivo, a conservação corre o risco de se tornar apenas uma forma de paisagismo, impulsionada por considerações estéticas e de engenharia. Mesmo os conservacionistas mais progressistas concordam que as intervenções – e não intervenções – precisam ser historicamente informadas, com o conhecimento histórico usado como um guia, não um modelo. O passado – ou, idealmente, uma variedade de passados – reflecte as condições ambientais às quais o espólio regional de espécies está adaptado e mostra os conjuntos de espécies locais que são possíveis com essa biota (Figura 2). Além disso, os futuros mais plausíveis na maioria dos locais são susceptíveis de ser apenas progressivamente diferentes dos actuais, pelo que uma ruptura total com o passado não é conveniente.

Fig. 2 – Continuidade histórica e ecológica.

Não é possível separar a consideração de escalas de tempo das do espaço. Tradicionalmente, a conservação pensa em grande, mas os projectos de restauro com intervenção intensiva são limitados a pequenas áreas por considerações práticas e, muitas vezes, orçamentais. A menos que sejam tomadas precauções, tal pode resultar em sistemas isolados, vulneráveis a todos os problemas que afectam fragmentos de ecossistemas naturais. Para evitar estes problemas, os projectos locais devem ser considerados integrados em cenários paisagísticos, regionais e globais. Nos casos em que é necessária uma acção de conservação à escala regional, a recuperação da natureza, é provavelmente a única opção prática actualmente. É particularmente necessária uma perspectiva global para os migrantes de longa distância, cuja sobrevivência depende das condições existentes em vários locais. O enfoque em funções e processos ecológicos pode tornar muito mais fácil projectar modelos históricos num futuro incerto, mas esta abordagem também tem os seus riscos. A gama de funções e processos exibidos em paisagens recentes em grande parte do mundo é apenas um subconjunto daqueles vistos antes das extinções da megafauna dos últimos 50 000 anos (Figura 2). Além disso, embora a maioria dos processos naturais seja dominada por espécies comuns, podendo assim ser replicados em sistemas muito mais simples, as espécies menos comuns podem possuir combinações pouco usuais de características funcionais que proporcionam níveis de segurança face às alterações ambientais a longo prazo. Há que atender ainda ao facto da biodiversidade ter outros valores – estéticos, culturais e éticos – que são independentes das suas funções ecológicas.

Finalmente, é importante notar que o Antropoceno não foi o único impulsionador de mudanças nas práticas de conservação ao longo da última década. Registou-se também um reconhecimento crescente da necessidade de maior eficiência e eficácia em termos de custos em resposta à dimensão dos problemas a resolver, uma maior sensibilização para a importância dos factores sociais e culturais na conservação, e apela a uma maior participação do público nas actividades de conservação. Estes factores de mudança são opostos à inércia institucional, à resistência social e à falta de experiência nas tecnologias necessárias, bem como às incertezas persistentes nas projecções de alterações ambientais.

Em suma, os debates mais importantes sobre a conservação nas próximas décadas irão provavelmente centrar-se nas linhas de referência a aspirar e nos níveis de intervenção necessários e aceitáveis, e precisamos de critérios acordados para facilitar estas decisões. Enquanto isso, pode ser útil desenvolver um novo vocabulário para o desenvolvimento de paradigmas de conservação voltados para o futuro, em vez de expandir os significados de termos que são inerentemente fixistas e nostálgicos.

QUESTÕES EM ABERTO
  • O que acontece se grandes áreas de antigas terras agrícolas são simplesmente deixadas por si só (ou seja, num processo de renaturalização passiva)? Serão os resultados desejáveis do ponto de vista da biodiversidade e serviços ecossistémicos e serão aceitáveis para as comunidades locais?
  • Em que condições é necessária a intervenção humana para se evitarem extinções de espécies em zonas naturais? Será necessária uma intervenção em resposta às rápidas alterações climáticas e ao rápido estabelecimento de espécies invasivas, mesmo em grandes áreas conexas?
  • Como poderão as acções de restauro ecológica limitadas a pequenas áreas ser ampliadas para toda uma região?
  • Será a natureza selvagem e quase pristina um objectivo razoável e alcançável? Como o podemos medir? A maximização da naturalidade é compatível com objectivos tradicionais de proteger a biodiversidade e manter os serviços ecossistémicos num mundo em rápida mutação?
  • Como poderão as novas tecnologias moleculares contribuir para os objectivos de conservação? Quando devemos modificar geneticamente as espécies selvagens, se é que alguma vez o devemos fazer? É a de-extinção útil?

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.