Uma estratégia global integrada para a biodiversidade e clima

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A dissociação entre as políticas para a protecção da natureza das de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, tem-se demonstrado ineficaz face à escala desafiadora dos problemas ambientais contemporâneos. O paradigma de segregação de grandes políticas ambientais – que negligencia a interconexão fundamental entre esses desafios – falhou em toda a medida, no alcance e amplitude de acção para contenção da perda de biodiversidade e no atenuar do ritmo das mudanças climáticas. O sucesso destes objectivos societais poderá ser alcançado com o alinhamento estratégico de políticas que promovam simultaneamente a protecção da biodiversidade, a mitigação climática – através da redução das emissões de gases de efeito estufa e/ou o sequestro duradouro destes – e a adaptação das sociedades às mudanças climáticas inevitáveis. Uma abordagem integrada pode, não só, contribuir para a atenuação das mudanças climáticas, através da protecção e restauro de habitats naturais – que actuam como sumidouros de carbono – mas também pode fortalecer a resiliência das comunidades humanas, ao garantir serviços ecossistémicos essenciais. Para alcançar estes objectivos ambiciosos, importa elevar substancialmente os actuais padrões de protecção ambiental, com a maximização de benefícios ambientais decorrentes dos 30% da superfície terreste e marinha a proteger até 2030 e ao se estender o olhar conservacionista para áreas que não sendo formalmente protegidas devem ser objecto de uma gestão cuidada para a sustentabilidade ambiental. Ao se defender a consecução de metas de eficácia optimizadas (i.e. mais elevadas), as nações do mundo caminharão não apenas para um futuro mais sustentável, mas também promoverão a transição para sociedades mais conscientes e um desenvolvimento em harmonia com as leis naturais.

O ano de 2009 marca um ponto de viragem no entendimento da escala de expressão das mudanças climáticas. Numa reunião na Royal Society, em Londres, biólogos e ecólogos marinhos, ao analisarem o passado e perspectivarem o futuro de recifes de corais tropicais, confrontaram-se com uma realidade preocupante:  as concentrações de CO₂ atmosférico, na época em 386 ppm, haviam ultrapassado o limiar estimado de tolerância de 350 ppm para esse ecossistema vital. Face a esse reconhecimento, percebeu-se que a amplitude das mudanças climáticas tinha atingido um nível em que a simples redução de emissões não bastaria para recolocar o planeta num estado de segurança natural e antrópica. Para a natureza e a sociedade operarem sob regimes ambientalmente seguros, uma parte do CO₂ presente na atmosfera necessita de ser recapturado de forma duradoura. Este reconhecimento desencadeou debates sobre como evitar problemas futuros e sobre as correcções necessárias para reparar os danos já infligidos. Em 2015, o Acordo de Paris, firmado em dar respostas a essa mudança de perspectiva, reconheceu a necessidade de acção urgente. Pela primeira vez, contemplaram-se trajectórias representativas futuras de diminuição da concentração de CO₂ atmosférico, nomeadamente: a trajectória RCP 2.6, caracterizante de uma sociedade global operando para a mitigação climática e com baixos níveis de emissões, e a trajectória RCP 4.5, representando um cenário de estabilização das alterações globais com emissões moderadas de gases de efeitos de estufa. Desde então vários estudos vêm reconhecendo a fotossíntese como o meio mais eficaz e económico de captura rápida de CO₂ da atmosfera, levando a que as no desenho das trajectórias societais futuras se incorporem cenários de reflorestamento e restauro ecológico de habitats em larga escala. Apesar do crescente reconhecimento da interconexão entre os sistemas climático e ecológico, a perda de biodiversidade continua a receber comparativamente menos atenção, e acções globais nesta área têm se mostrado pouco eficazes (i.e. o paradoxo da conservação sustenta que apesar das crescentes e mais rigorosas metas para a conservação, o ritmo de perda de biodiversidade permanece preocupante). É cada vez mais claro que as sinergias entre as mudanças climáticas e a conservação da biodiversidade são cruciais para atingir objectivos societais e ambientais mais amplos, como os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, as metas de Kunming-Monterreal decorrentes da Convenção sobre Diversidade Biológica 2020 e o Acordo de Paris. Este reconhecimento crescente reflecte-se ainda em movimentos sociais globais que buscam impulsionar a acção política em prol de um equilíbrio planetário antropocentricamente mais seguro.

Embora a redução das emissões continue a ser fundamental, o armazenamento duradouro de carbono revela-se igualmente essencial. A protecção e restauro dos habitats naturais representam estratégias eficazes na mitigação das alterações climáticas, com claras sinergias com objectivos de protecção da biodiversidade. É crucial reconhecer que se essas agendas não estiverem adequadamente alinhadas, há o risco de que uma possa prejudicar a outra (na Figura 1 mostram-se as áreas a priorizar para cada um dos objectivos, bem com as áreas concordantes para ambos). Por exemplo, habitats mais eficazes na captura de carbono ou na redução de inundações podem não ser os mais biodiversos, intactos ou naturais. Portanto, a busca obstinada por objectivos específicos, como o armazenamento de carbono ou a redução do consumo de combustíveis fósseis, pode levar a políticas que contradizem os esforços de conservação da vida selvagem. Um exemplo disso são as plantações em larga escala de monoculturas com elevada capacidade de armazenamento de CO₂, mas que não oferecem condições adequadas a uma biodiversidade funcional. Outro exemplo é a conversão de habitats para culturas destinadas à produção de biocombustíveis, visando reduzir as emissões de carbono, mas às custas da biodiversidade. Estas são “bioperversidades” que urge evitar. Realidades mais próximas incluem igualmente a destruição de importantes manchas de vegetação para implantação de centrais fotovoltaicas e eólicas, cuja localização de maior proveito e eficácia coincide com áreas ecologicamente degradadas e próximas de núcleos de consumo energético (e.g. grandes cidades e polos industriais).

Fig. 1 – Correlação entre áreas de elevado valor para a biodiversidade, na sua forma intacta (Bip) e ameaçada (BIr) e a densidade de carbono aéreo e no solo (C density), (a) e (b) respectivamente. (c) convergência entre as 20% área do planeta com maiores índices de biodiversidade intacta (verde) e ameaçada (vermelho) e os 20% de áreas com maior densidade de carbono retido. Figura obtida de Soto-Navarro et al. (2020).

Numa revisão global das metas ambientais deve-se considerar os inúmeros benefícios colaterais proporcionados pela protecção da vida selvagem e habitats naturais, não apenas em termos da conservação dos recursos naturais essenciais, mas também em relação à mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Os esforços de conservação devem ser vistos como peças fundamentais numa abordagem eficaz e séria às mudanças climáticas. Os habitats naturais ou decorrentes de restauro ecológico desempenham um papel crucial na mitigação das alterações climáticas e na facilitação dos processos adaptativos das sociedades humanas. Por exemplo, zonas húmidas, turfeiras e pântanos funcionam como grandes sumidouros de carbono; zonas húmidas funcionais e recifes de corais formam barreiras naturais auto-regenerativas que protegem as costas face à elevação do nível do mar; habitats agrícolas ecologicamente funcionais sustentam populações de polinizadores, predadores que controlam as pragas e facilitam a dispersão de sementes. Além disso, populações de peixes mesopelágicos não pescados contribuem para o sequestro de carbono no fundo dos oceanos, enquanto que a protecção da naturalidade de ecossistemas permite que o armazenamento de carbono quer o evitamento da sua libertação. As paisagens florestais, naturais e restauradas, promovem a retenção de água e o combate às inundações, regulando o clima e a precipitação às escalas local, regional e continental, enquanto. Esta compreensão dos múltiplos benefícios decorrentes da conservação da biodiversidade e ecossistemas deve orientar políticas mais eficazes e integradas no enfrentamento aos desafios planetários.

As metas de protecção de habitats naturais e funcionais em 30% da superfície terrestre e marinha são ambiciosas, mas importa identificar estrategicamente as áreas que permitem maximizar os cobenefícios ecológicos, climáticos e societais. E este é um desafio longe de ser trivial. Ecossistemas intactos e auto-regulados são essenciais para que a natureza contribua para a mitigação das mudanças climáticas. É essencial proteger e deixar intactos os depósitos de carbono existentes. No entanto, dada a degradação já ocorrida em muitos ecossistemas, garantir a continuidade dos seus serviços requer não apenas a protecção preventiva dos habitats actualmente intactos, mas também a recuperação e revitalização em grande escala dos habitats degradados. A ampliação do espaço para a recuperação de ecossistemas intactos e funcionais resultará numa cascata de benefícios que ajudarão a manter a habitabilidade da biosfera diante das mudanças climáticas, garantindo assim o bem-estar das gerações futuras. Os objectivos internacionalmente estabelecidos de proteger 30% das áreas terrestres e oceanos até 2030 foram já considerados insuficientes para a salvaguarda da natureza, mesmo sem a consideração das pressões climáticas. Com base na relação espécies-área, uma das poucas leis universais reconhecidas, a protecção de habitats tão limitados condenará milhares de espécies à extinção se os restantes habitats forem convertidos, degradados ou perdidos. É essa lógica que fundamenta o movimento Half Earth, que busca assegurar que os processos e serviços ecossistémicos necessários para sustentar a vida na Terra sejam mantidos por meio de grandes populações de vida selvagem e extensões massivas de habitats intactos e restaurados.

Políticas desenhadas sob objectivos singulares e desprovidas de uma visão estratégica integrada podem ter consequências nefastas, mas as áreas onde a natureza opera de forma funcional, com seus múltiplos benefícios para a vida selvagem e sociedades humanas, representam uma ferramenta económica, de baixa tecnologia, para moderar as mudanças climáticas, facilitando processos adaptativos e a reversão da perda de biodiversidade. A eficácia e a capacidade de áreas protegidas e de planos de restauro ecológico a larga escala para o alcançar de múltiplos objectivos dependem de diversos factores. O esforço para estabelecer áreas protegidas tem se concentrado em locais remotos e ecossistemas mais intactos, o que, embora importante, é insuficiente para enfrentar outras necessidades humanas. Estender esses benefícios a mais pessoas exigirá um maior esforço de protecção em regiões mais populosas e recurso ao restauro ecológico.

Nos últimos anos, a ciência avançou significativamente na compreensão do papel dos ecossistemas naturais no bem-estar humano e nos equilíbrios planetários, bem como na escala das rápidas mudanças climáticas. Diante da situação crítica dos ecossistemas naturais e da nossa dependência fundamental deles para a sobrevivência, surge uma necessidade premente de ampliar os objectivos estabelecidos pela Convenção sobre Diversidade Biológica, a fim de garantir espaço suficiente para que a natureza prospere e se adapte num mundo em rápida mutação. Os habitats devem ser parte da primeira linha de defesa nos esforços de mitigação das mudanças climáticas e na promoção da adaptação dos ecossistemas e da sociedade aos seus efeitos. Ambos os objectivos necessitam de convergir numa estratégia conjunta para a sobrevivência planetária. Há um consenso crescente de que pelo menos 30% dos habitats devem ser protegidos até 2030, com estratégias que permitam alcançar a representação ecológica e a conectividade. Há também uma visão global que defende o restauro da natureza e de uma vasta gama de serviços ecossistémicos. Numa próxima fase, as ambições globais para a sustentabilidade, devem então focar-se no atingir dos objectivos últimos essenciais, expressos em resultados concretos de preservação da natureza, de apaziguamento climático e promoção de sociedades ambientalmente conscientes e humanamente seguras. Uma visão integrada do funcionamento planetário é assim necessária.


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